‘Ilha-mundo’: as influências étnicas globais que moldaram a identidade cultural e histórica de São Luís
08/09/2025
(Foto: Reprodução) Vista da Avenida Beira-Mar e Palácio dos Leões em São Luís
Divulgação
Aos 413 anos, São Luís carrega em sua história as marcas de um passado vivo, resultado da mistura de etnias que estiveram presentes desde o início da colonização. A presença de franceses, indígenas, portugueses, africanos e caribenhos nas terras ludovicenses ajudou a construir uma identidade plural, visível nos costumes, na culinária, no modo de falar e nas manifestações culturais.
Tombada como Patrimônio Mundial da Humanidade pela UNESCO em 1997, a cidade quadricentenária cresce em meio a um contraste harmonioso, no qual passado e presente se complementam. Ela abre espaço para o novo, sem abrir mão das raízes que tornam a capital maranhense tão singular e viva.
Com tantas influências que fazem parte da organização cultural de São Luís e com apoio de especialistas, o g1 Maranhão volta ao passado e mostra algumas das contribuições globais que fazem da capital uma ilha-mundo.
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Os “fundadores”: as marcas da influência francesa
Os franceses foram um dos primeiros povos que contribuíram na construção da história de São Luís, sendo os responsáveis pela fundação da cidade, a única capital do Brasil que foi fundada por franceses.
Apesar do título significativo, historiadores defendem que essa fundação é vista mais pelo ponto de vista turístico e não histórico, já que a maior parte das influências cotidianas originárias da época da colonização foram heranças deixadas pelos portugueses, africanos e os povos originários.
Entretanto, os franceses deixaram uma herança significativa na construção das primeiras relações com os povos originários. Ao chegarem à ilha, eles tiveram contato com os tupinambás e, para estabelecer comunicação, fizeram a tradução do tupi para o francês.
Locais com presença dos indígenas no período de 1613, incluindo São Luís
Les français au brésil: La Ravardière et la France équinoxiale ( 1612-1615
Ao g1, Marcos Tadeu Nascimento, professor e mestre em História pela Universidade Estadual do Maranhão (Uema), explica que essa é uma das heranças deixadas pelos franceses já que parte deste importante contato foi registrado por padres que estiveram na região na época. Um deles, Claude de Habeville, publicou detalhes dessa relação em 1614, no livro ' História da missão dos padres Capuchinhos na ilha do Maranhão'.
“Os indígenas não tinham língua escrita e essa inscrição da língua foi feita pelos franceses nesse período criando essa tradução do tupi para o francês. O grande patrimônio desse contato é que a gente não tem em nenhum outro lugar do Brasil uma documentação escrita tão vasta sobre esse contato. Os franceses podem não ter levantado casarões, mas documentaram tudo sobre os primeiros anos aqui, e isso é muito importante para a história da cidade", explica o professor.
Os franceses permaneceram em território ludovicense por apenas três anos, quando foram expulsos em 1615, pelos portugueses na Batalha de Guaxenduba, que restabeleceu o domínio português sobre o território. Por isso, os franceses não estabeleceram tantas heranças culturais na região.
Uma das heranças é o nome 'São Luís', uma homenagem ao rei Luís XIII, da França e mesmo após a expulsão dos franceses, os portugueses mantiveram o nome para guardar a memória do início da colonização da região. Além disso, os fortes franceses construídos ao longo do litoral ludovicense, foram outra grande herança física deixada por eles.
Da colonização aos casarões: a influência portuguesa
Proprietários de casarões históricos da cidade podem ter descontos no IPTU
A. Baeta / Prefeitura de São Luís
As ruas estreitas com calçamento de pedras, os casarões coloniais e os azulejos são algumas das muitas expressões da herança cultural deixada pelos portugueses. Esses traços culturais, somados à culinária e à religiosidade, compõem os traços da presença portuguesa na região e ajudaram a construir a história de São Luís.
Um dos legados mais emblemáticos é o conjunto arquitetônico de casarões e sobrados localizados no Centro Histórico de São Luís, que se tornaram símbolos da cidade e contribuíram para seu tombamento como Patrimônio Mundial da Humanidade pela UNESCO, em 1997.
Na época, os prédios tinham arquitetura inspirada na Europa, mas foram construídos de uma forma diferente para conseguir se adaptar ao calor da região. Os azulejos portugueses coloridos, por exemplo, tinham não apenas uma função estética, mas também serviam como proteção térmica contra a umidade.
Azulejos coloniais atraem a atenção de moradores e turistas no Centro Histórico em São Luís
Reprodução/TV Mirante
A religiosidade também é um traço cultural marcante deixado pelos portugueses em São Luís e reflete nas inúmeras igrejas que foram construídas na capital. Seja no estilo barroco, gótico e neoclássico, a história de cada uma delas está ligada ao passado e a tradição católica que foi trazida pelos colonizadores.
A Igreja da Sé, um dos cartões-postais mais emblemáticos de São Luís, começou a ser construída pelos jesuítas em 1690, mas foi inaugurada apenas em 1699. A igreja tinha como padroeira Nossa Senhora da Vitória, considerada pelos portugueses padroeira deles na Batalha de Guaxenduba, que resultou na expulsão dos franceses de São Luís.
Conta-se que, durante o confronto, os portugueses pediram ajuda a Nossa Senhora e foram atendidos, conseguindo vencer os franceses mesmo em desvantagem numérica.
Catedral Metropolitana de São Luís (Igreja da Sé) em São Luís (MA)
Luís Guilherme/Flickr/Reprodução
Resistência, culinária e a força da religião: a influência africana
Os africanos chegaram ao Maranhão durante o período colonial, trazidos como escravizados pelos colonizadores para trabalhar na agricultura, no comércio e em serviços urbanos. Apesar da opressão, conseguiram resistir preservando suas tradições e ocupando espaços importantes que hoje refletem de forma significativa na identidade cultural de São Luís.
Isso se reflete na forte presença quilombola em São Luís e em todo o Maranhão. O estado tem a segunda maior população quilombola do Brasil, com 269.074 pessoas que se autodeclaram quilombolas e vivem em 32 municípios maranhenses, segundo dados do Censo do IBGE de 2022.
Em São Luís, esse traço de ocupação quilombola pode ser observada em diversos bairros da capital, em especial, o da Liberdade, que concentra a maior parte da população quilombola e é considerado um dos maiores Quilombos Urbanos do Brasil, com mais de 160 mil habitantes, sendo um espaço de resistência e fortalecimento da identidade dos antepassados africanos.
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CONAQ
A religiosidade é um dos pontos-chave para compreender a importância da contribuição africana na formação da identidade cultural de São Luís. Um dos exemplos foi o surgimento do Tambor de Mina, uma religião afro-brasileira que conta com influências de matrizes africanas e combina com o sincretismo religioso católico.
De acordo com o professor e mestre em História, Marcos Tadeu Nascimento, há registros de que, desde o século XVIII, mais precisamente em 1792, os africanos escravizados que viviam na região já cultuavam caboclos, voduns, orixás, encantados e gentis, entidades presentes na religião do Tambor de Mina.
“Um dos grandes mestres do Tambor de Mina, Pai Euclides, fundador da Casa Fanti Ashanti, conta que, desde sua fundação em 1792, já havia registros de africanos que cultuavam os caboclos. Eles foram um dos primeiros povos a pisar no Maranhão", diz o professor.
Para o professor, uma das características mais marcantes que dizem muito sobre a fundação e as influências na construção da identidade cultural de São Luís, é a chegada de todos esses povos na região oriundos de várias partes do mundo e que carregam consigo influências de outros países e etnias, que foram readaptadas aqui.
“A gente tem que perceber que esse francês, esse português, ele não chega sozinho aqui. Ele vem com africanos, com turcos, com pessoas de diversas identidades e com o mundo mediterrâneo", diz o professor.
Grupo de Tambor de Crioula se apresenta no carnaval em São Luís
Governo do Maranhão/Divulgação
Outra manifestação cultural popular do Maranhão que tem origem e influências africanas é o Tambor de Crioula. A expressão é tipicamente maranhense, pode ser feita livremente sem calendário específico. A manifestação foi ao mesmo tempo uma forma de entretenimento e uma homenagem a São Benedito, o protetor dos negros.
A influência africana também é perceptível na gastronomia local com a presença de pratos que combinam ingredientes locais, como a vinagreira, a técnicas de culinária africana como o uso do azeite de dendê, temperos como corantes, na preparação de pratos típicos da culinária maranhense, como o arroz de cuxá e o sururu.
Os primeiros a chegar: a influência dos povos indígenas
Antes mesmo da chegada de franceses ou portugueses às terras maranhenses, os povos indígenas já habitavam a região que, anos depois, se transformaria em São Luís. O modo de vida e os costumes dos povos originários ainda estão presentes no cotidiano dos ludovicenses.
O Bumba meu boi, manifestação cultural considerada Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, reúne elementos indígenas e africanos. O título foi concedido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Bumba meu boi no Arraial do Ipem
Adriano Soares/Grupo Mirante
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No auto do bumba meu boi, por exemplo, há a presença de personagens indígenas, homens e mulheres que, por meio de encenações de rituais sagrados, ajudam a mostrar a importância dos povos originários na construção da identidade maranhense.
A influência indígena também aparece nos nomes de bairros da capital maranhense. Maracanã, bairro da zona rural de São Luís, tem nome de origem tupi: Maraka’Nã, que designa um tipo de ave da família das araras, comum na região.
O ritmo e a musicalidade: a influência caribenha
Bloco do Reggae anima foliões no circuito Vem Pro Mar, em São Luís
Pink de Cássia
A musicalidade e a mistura de ritmos são traços marcantes da cultura ludovicense. Um exemplo dessa diversidade é a influência de países do Caribe, especialmente da Jamaica, que trouxe para a cidade um dos ritmos mais populares: o reggae.
Esse intercâmbio cultural fez com que São Luís fosse apelidada de “Jamaica Brasileira” ou “Ilha do Reggae". O professor e mestre em História, Marcos Tadeu Nascimento, explica que sítios arqueológicos presentes em várias regiões do Maranhão mostram a presença de povos do Caribe antes mesmo da chegada do reggae a São Luís, em meados dos anos 1970.
“Temos um vasto registro de patrimônio cultural que mostra a conexão do Maranhão com o Caribe. Quando a gente olha os sítios arqueológicos lá da baixada maranhense que a UFMA tem um laboratório com cem mil peças, incluindo pedras que só podem ser encontradas na Guatemala, um país do Caribe", afirma o professor.
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Ao g1, o professor e mestre diz que existem algumas teorias sobre a chegada do reggae no Maranhão. Uma das mais importantes, é que o ritmo, símbolo de resistência jamaicana, chegou por meio de barqueiros e marinheiros que aportavam na cidade de Cururupu e trocavam discos de vinil de reggae por comida, bebida ou até como forma de pagamento a prostitutas no Porto do Itaqui.
Com a chegada ao Maranhão, o ritmo não ficou restrito a grupos específicos e tornou-se parte da cultura popular, ganhando um estilo próprio de dança, conhecido como "regar", uma forma de dançar o reggae coladinho, marca registrada das festas e radiolas no Maranhão.
E é dessa fusão de raízes francesas, portuguesas, indígenas, africanas, caribenhas, e tantas outras, que nasce a essência de São Luís: uma cidade quadricentenária, moderna, e que encontra na diversidade cultural motivos de sobra para celebrar sua história e reafirmar sua identidade no mundo.